Retórica populista ameaça o futuro das instituições no Brasil
Ocupação no campus de Guarulhos da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)
JUVENAL SAVIAN FILHO
É recorrente, no meio universitário, a expressão “a universidade que
queremos”, usada geralmente em contextos de crítica às políticas de
situação e para pôr em pauta algum item considerado importante. Faremos
um exercício pedagogicamente fértil e sobremaneira instigante se nos
debruçarmos sobre o sentido dessa curiosa expressão, que, aliás, surge
nas bocas de representantes das mais variadas tendências.
Para dar, de saída, um lastro histórico ao bordão, evoco aqui o
debate que nos últimos dias eclodiu na grande mídia a respeito da crise
vivida pela Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH) da
Unifesp. Um coletivo de docentes da EFLCH redigiu um dossiê sobre as
causas da crise, articulando-as diretamente com a permanência da EFLCH
no Campus de Guarulhos, Bairro dos Pimentas.
Como reação contrária ao dossiê, levantou-se basicamente o discurso
que o acusa de elitismo, impingindo aos seus autores uma forma crassa de
preconceito contra a periferia.
Em sua última reunião, ocorrida no dia 02 p.p., a Congregação da
EFLCH encampou oficialmente o debate e instituiu uma comissão
encarregada de organizá-lo. Orquestraram-se imediatamente, então,
algumas vozes, declamando em uníssono que o debate deve deixar evidente
“a universidade que queremos”. Não tardou a ser cantado o corolário:
“desde que seja da periferia, na periferia e com a periferia”.
Ao nosso exercício, aqui, não importa se falamos de periferia ou
centro. Pretendo deter-me no sentido de dizer “a universidade que
queremos”.
Ideia e história da universidade
Se emprego a expressão “a universidade que queremos”, a primeira
camada de sentido, a mais evidente por estar na superfície, é aquela que
me diz ser possível discutir sobre o que é uma universidade, pois, se
há uma universidade que queremos, isso significa que ela ainda não
existe; e a que existe não satisfaz. Então, é preciso lutar pela
efetivação da universidade de nossos anseios.
Pressupõe-se, por sua vez, que tais anseios sejam a manifestação dos
sentimentos os mais elevados, referentes ao amor pelo saber, o cultivo e
o cuidado de si, a justiça, a paz etc. Tais sentimentos revelam-se nas
camadas mais discretas do sentido da expressão aqui investigada e, como
são elevados, legitimam a luta por sua concretização.
Assim, considerando essas camadas de sentido, pareceria justificável
afirmar a existência de uma ideia de universidade que regularia a
análise das manifestações concretas e mesmo os projetos de efetivação
dos nossos anseios concernentes à vida universitária.
Todavia, mesmo que a história da universidade seja longa, remontando
ao século XI (para não entrar na querela relativa ao nascimento da
instituição universitária já na Antiguidade) e fornecendo elementos
recorrentes que entrariam sem dúvida na concepção do que seja uma
universidade, não se pode pretender que seja fácil investigar sua
“ideia” e explorar todas as suas latências.
O que fazer?
Ceder a algo como um relativismo, aceitando que cada cabeça emita sua
sentença sobre o que é a universidade? Ouvir os inspirados e os gênios?
Perdermo-nos em sutilezas metafísicas ou ontologizantes? Proceder a uma
fenomenologia da formação, especificamente universitária?
Muita tinta já correu em torno do tema, sobretudo em sua configuração
moderna, desde os tempos de Kant. No Brasil, as três últimas décadas
viram nascer uma farta bibliografia. Por isso, não posso ter a
arrogância de querer ensinar aos colegas coisas novas sobre a
universidade. Com muita simplicidade e atendo-me à expressão “a
universidade que queremos”, gostaria apenas de adotar uma posição
bastante “pragmática” e relembrar o que gigantes já aprenderam: é a
história da universidade o melhor critério para avaliar a vida
universitária e encontrar respostas em tempos difíceis como os nossos,
ou seja, de confusão mental-afetivo-cognitiva.
No modo como vem sendo empregada por alguns colegas dos diferentes
segmentos da comunidade universitária, essa expressão ignora ou omite
elementos que até hoje se mostraram válidos porque assentados na
experiência. Ignorando-os ou omitindo-os, corremos o risco de produzir
uma antiuniversidade.
Formas de autonomia universitária
O primeiro elemento a destacar é o que, em termos ético-políticos, designa-se por “autonomia universitária”.
Associado ultimamente à imprudência e às práticas intervencionistas
defendidas por autoridades universitárias, civis, políticas e militares,
esse elemento, entretanto, refere-se também às ingerências de
políticos, empresas, segmentos e movimentos sociais (como associações de
bairro, partidos, igrejas, sindicatos etc.) nos rumos da universidade.
Desde o Medievo, em que as autoridades universitárias sobrepunham-se
em poder muitas vezes a bispos e arcebispos, passando, por exemplo,
pelas controvérsias barrocas em que reitores eram vistos como iguais ou
superiores a pastores, burgomestres e príncipes, chegando às
configurações colegiais dos conselhos e reitorias contemporâneos,
firmou-se, no decorrer dos séculos, a “tradição” da autonomia da
universidade. Embora naturalmente exógena, ela sempre foi marcada por
uma saudável “endogenia” e mesmo por uma “endoergia”.
Por conseguinte, a instituição universitária, embora radicada em
contextos precisos, sempre teve a vocação e o dever de transcendê-los.
Sempre esteve e não esteve nos lugares, e, a não ser em alguns casos em
que se pôs a serviço de certas ideologias totalitárias, a universidade
em geral foi animada por um espírito cosmopolita. Sem proceder a nenhum
aplainamento ou esmerilhamento das diferenças históricas, parece
possível generalizar esse dado e atribuí-lo às formas de vida
universitária.
A autonomia, respeitada em maior ou menor grau, permite à
universidade cultivar o que foi sua razão de ser desde suas origens: as
diferentes formas de saber, cultivadas nos mais elevados graus de
especialização, convergindo para as mais sofisticadas maneiras de
universalidade e articulação. Desse ponto de vista, guardadas as devidas
proporções, um docente medieval entendia de inter ou
transdisciplinaridade tanto como nós ou mesmo mais do que nós. É
recente, na vetusta história da universidade, a especialização asinina.
Para garantir essa vida enraizada no contexto imediato e independente
dele, abrindo o horizonte do mundo aos seus frequentadores e permitindo
a dedicação de professores e alunos ao que havia de menos “utilitário”,
a universidade sempre respeitou seus segmentos, embora não abrisse mão
da prerrogativa dos docentes na definição geral dos rumos de um campus.
A razão era muito simples: os docentes eram os “especialistas” que
podiam falar com propriedade sobre seus objetos e métodos. Já nos tempos
de Abelardo os estudantes e técnicos opinavam muito mais do que em
nossos dias, como atestam as histórias e narrativas lúdicas da época.
Nos tempos modernos, por mais que imperasse a imagem dos docentes
catedráticos, eles não eram os professores de gabinete de que se fala
muitas vezes. Não se pode projetar na universidade moderna as imagens
das escolas primárias, com seus algozes.
Assim, se não cabe falar de “democracia” na história da universidade,
também não se pode falar de abolutismo. Mas o respeito aos diferentes
segmentos não significava pretender que os docentes tinham a mesma
qualificação que estudantes e funcionários na determinação dos rumos de
uma universidade.
Muitos outros elementos históricos poderiam ser destacados. Para
finalizar, vale trazer à tona a característica que passou a marcar a
universidade, de modo geral, a partir do início do século XIX: ela se
tornou a principal instituição de difusão da cultura. Não que isso não
houvesse antes, mas a ênfase dos séculos XIX e XX na divulgação impôs-se
inquestionavelmente, embora tangenciada, é verdade, pela preocupação
(legítima ou não) com a utilidade e o “progresso”.
A universidade que queremos no Brasil
Ocorre infelizmente que, muitas vezes, não percebemos as diferentes
camadas de sentido contidas na expressão “a universidade que queremos”.
Muitas vezes não nos damos conta de que qualquer intervenção pode
servir para o “bem” ou para o “mal”. Como me situei no lastro do debate
em torno da crise da EFLCH-Unifesp, é importante perguntar qual o real
sentido de lutar para que os segmentos sociais participem das decisões
sobre o rumo da mesma.
Uma coisa é dizer que, no contexto brasileiro, seria pertinente à
EFLCH, em suas pesquisas e docência, apresentar sensibilidade a
problemas sociopoliticoeconômicos; outra coisa é defender que a
comunidade decida, por exemplo, se convém ou não à EFLCH permanecer onde
está.
Esse debate é deveras complexo, mas refletir sobre essa distinção é
inescapável. Corre-se o risco de lutar por uma universidade do bairro,
com interesses específicos, contrariando-se a vocação universitária
cosmopolita. Ceder-se-ia inevitavelmente a uma intervenção na autonomia
universitária, o que, aliás, é inconstitucional.
Raciocinando pelo contrário, imaginemos se a EFLCH estivesse
localizada em um bairro de classe rica, porém distante, de difícil
acesso e com problemas análogos aos que têm sido identificados no Bairro
dos Pimentas. Seria válido recorrer à função social da EFLCH para
defender que a população local teria direito de manifestar-se sobre os
rumos da escola? Se a EFLCH estivesse na Granja Julieta, por exemplo, e
com o mesmo público estudantil atual (isto é, com praticamente 90% de
estudantes não residentes no bairro), faria sentido falar que ela deve
ficar no lugar onde foi fundada? Com a mesma proporção atual de alunos
do bairro (que, nessa hipótese, também não seriam muitos, porque,
segundo estimativas do governo, estudantes provenientes de classes ricas
optam em maioria por cursos diferentes de filosofia, letras e ciências
humanas), alguém se recusaria a ver o caráter excludente da EFLCH e
negaria que, no centro de São Paulo, ela seria realmente “democrática”?
Fala-se também que é missão da universidade contribuir para a justiça
social, acolhendo em seus quadros a população carente. Obviamente é
desejável que todo ser humano, rico ou pobre, receba formação superior.
Mas não é desviar o foco falar em ricos e pobres? Há alunos pobres
financeiramente que se saem brilhantemente na universidade; e alunos
vindos de famílias mais beneficiadas financeiramente, mas com desempenho
sofrível. Em que pese o cargo que desempenho atualmente, sou um caso de
aluno pobre que se saiu bem. Mas tenho clara consciência de que uma
universidade, na periferia de onde venho, não atenderia em nada às
necessidades locais; dificilmente meus amigos acederiam a ela e
certamente sequer teriam interesse por ela.
Universidade para todos?
Quanto ao ideal de que todos tenham formação universitária e de que a
universidade deve acolher a todos, eis aí outro caso que merece
reflexão. Todos têm vocação para a universidade? É a universidade que
torna alguém “plenamente” humano? É ela que deve ser o critério para
fundamentar a dignidade individual?
Nesse quesito, alguns países europeus oferecem um exemplo bastante
pertinente, pois em vários deles há movimentos em defesa da
desmistificação das carreiras universitárias. Pergunta-se, por exemplo,
pelo porquê de “empurrar” a população à universidade para depois
frustrá-la com as insatisfações pessoais, as concorrências desumanas, as
dinâmicas perniciosas de algumas carreiras universitárias etc.
Sem entrar no teor desse debate, evoco-o, no entanto, para mostrar
como um pretenso direito universal à formação universitária para
justificar que a universidade molde-se por seus contextos pode ocultar
sentidos socialmente negativos e uma descaracterização da universidade.
Isso não significa reservar a universidade para os “melhores”, pois é
mais do que óbvio que o valor de um indivíduo não se mede por seus
diplomas. Por outro lado, é a universidade que tem abrigado aqueles que
têm vocação para a “alta” pesquisa e a docência superior, principalmente
em nossos tempos, de banalização e tecnicização dos saberes.
Assim, o que se pretende com a “universidade de todos”? Um
nivelamento, a fim de que “todos” possam construir uma mesma formação? A
possibilidade de que os mais necessitados supram suas carências? Mas,
se a ideia de universidade é a de ensino “superior”, no sentido de ser
superior às fases anteriores, ela não será instrumentalizada se servir
para suprir carências? Esse papel não deve ser desempenhado por outras
instâncias? Caberia, por exemplo, à graduação em matemática ensinar a
regra de três? Ou adaptar-se ao seu contexto imediato? Se o exemplo
choca, por que sugerir que cabe às humanidades suprir as carências
culturais e de formação básica, atendendo à população local?
Parece residir, por trás dos discursos que associam a universidade à
justiça social, a crença de que ela deve iluminar as mentes, e,
indiretamente, governar, uma vez que teria condições de promover
revoluções políticas e sociais. Além de essa crença ser historicamente
refutável, ela contém o equívoco de uniformizar as diferentes áreas do
saber. Algumas áreas do saber podem ter, sem dúvida, mais relação com a
práxis e a governação ou algo que as valha (como é o caso de direito,
economia, pedagogia etc.); outras precisam da garantia de poder
dedicar-se à “teoria”, como a filosofia, a física, a matemática etc.
Outras, ainda, operam na intersecção de teoria e práxis, como a
história, a política, ramos da pedagogia, ramos da filosofia etc.
Todas, entretanto, encontram na universidade o território de sua
livre atividade e mesmo de sua proteção contra as manipulações “bem” ou
“mal” intencionadas. Por isso, não se pode esperar da universidade que
ela seja voltada para a revolução, para a justiça socioeconômica, para a
emancipação dos povos ou qualquer outro interesse do gênero, assim como
não se pode esperar dela que produza formas mais requintadas de
dominação, de antirrevolução, de instrumentalização técnica.
Empobrecer para democratizar
No Brasil, curiosamente, apesar de muitos problemas, ainda vigora
paradoxalmente uma imagem da universidade ligada à sua tradição
histórica. É verdade que nos últimos anos, mesmo com imensos avanços
graças aos últimos governos federais, tem-se visto, da parte de
políticos, professores e estudantes, uma concessão aos ideais de
“universidades democráticas”, que, como efeito colateral, têm
empobrecido gravemente a pesquisa e a docência, segundo estatísticas do
próprio governo federal.
São sintomáticos os casos de docentes que, não logrando manter
diálogo com os melhores especialistas de sua área no mundo, terminam por
defender algo como uma “criatividade brasileira” e tornam-se
autorreferentes, não saindo de obviedades. Talvez isso seja inevitável
em políticas de expansão? Talvez. E talvez o tempo permita que se
corrijam os percalços. Isso, entretanto, não será feito com retóricas
populistas e críticas ao que a história ocidental da universidade
construiu pedra por pedra.
É por isso mesmo que, no Brasil, ainda vale queimar as pestanas com a
ideia e a história da universidade. Em outros lugares do mundo, já se
cedeu à tecnicização da mesma; em outros, a filosofia e as humanidades
estão à beira da extinção. Dizer isso não é fazer discurso terrorista;
basta ver os efeitos da “política Sarkozy” para os laboratórios do CNRS
nos últimos anos (ainda que, obviamente, as universidades francesas
estejam bem longe do fim).
No Brasil, com toda a expansão das universidades e, portanto, o apoio
explícito dos governos municipais, estaduais e federais, é impossível
justificar a intervenção às avessas que subjaz à retórica populista e à
defesa de algo como a ditadura da periferia. É mais compreensível, em
alguns cursos como os de educação, que a pesquisa e a docência estejam
ligadas a populações carentes e de zonas de maior conflito (aliás, o
curso de pedagogia da EFLCH-Unifesp é exemplar nesse aspecto, com
docentes e pesquisas de reconhecimento nacional); incompreensível,
porém, é pretender que esse tipo de ação justifique a caracterização de
toda uma Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.
Paridade ilusória
Outro aspecto que merece atenção na universidade popular defendida
por colegas brasileiros é a equiparação pura e simples dos docentes aos
estudantes e técnico-administrativos. Tem ressurgido com força a luta
pela paridade na administração universitária e mesmo nos assuntos
envolvidos à formação. É o que explica que na EFLCH-Unifesp, por
exemplo, uma aluna, depois de uma aula de filosofia extremamente
didática, rica e criativa, dada aliás por uma professora titular, tenha
posto o dedo em riste e perguntado à docente: “mas você também reflete
sobre a vida real?”. É o que também faz alunos da EFLCH colarem
cartazes, dizendo que têm vergonha de seus professores. É o que faz
ainda muitos técnicos considerarem os docentes “tradicionais” como
rivais.
Mas, como não ver a obviedade da prerrogativa dos docentes nos
assuntos educacionais e mesmo administrativos? Por que submeter-se a um
contorcionismo mental improdutivo, a fim de justificar uma paridade
ilusória? Os estudantes deixam a universidade, na sucessão das gerações.
Os técnicos não são aptos a pensar o aspecto acadêmico da formação. São
os docentes que permanecem e dão a sustentação típica de uma
universidade. Imaginemos onde parariam as coisas se os funcionários e
pacientes de um hospital votassem juntamente com os médicos a
pertinência de ministrar tratamentos aos internados!
Parece, portanto, útil esmiuçar esse lema aparentemente inofensivo
mas que pode ocultar um pensamento profundamente autoritário,
inconsequente e instrumentalizador: “a universidade que queremos”.
Qual é ela?
A da história secular, na qual uma “ideia” de universidade – malgrado
as dificuldades, combates e manipulações que também não deixaram de
existir – ainda prevalece, com amor ao saber que nela arde e é protegido
por ela? Ou a da retórica populista-intervencionista, na pele do
cordeiro da periferia e da revolução social, empunhando a bandeira do
“bem”, mas visivelmente não tão boa assim?
Em nome da justiça e da igualdade, universitários brasileiros querem
dar à velha senhora de nome Universidade a beberagem fatal de que falava
Gérard Lebrun nos anos 1980. Por que, então, não deixá-la morrer em
paz?
Juvenal Savian Filho é coordenador da Pós-graduação em Filosofia da Unifesp.
Nenhum comentário:
Postar um comentário